Tudo
que é novo incomoda. Seja um sapato novo ou um novo buraco no sapato
velho. O que dizer, então, de uma mudança repentina, para uma
cidade distante, tão surpreendente que até a despedida dos amigos
de infância lhe foi vetada? A alegria de Margarida havia ficado para
trás, dando lugar a uma vida escura, privada da liberdade, cercada
pelo medo de algo que nem sabia o que era. Assim tem vivido seus
últimos 10 anos.
Uma
lacuna em sua memória, como se tivessem passado uma borracha em um
pedaço generoso daquele último dia antes do ingresso na nova vida,
ainda a deixava mais confusa. O que aconteceu durante este lapso? Ela
não sabia a resposta, mas dentro de si sentia que todo esse
sofrimento homeopático era merecido. Inclusive a mudança no
comportamento do pai, o coronel Abigail, que com o passar dos anos
ficava perigosamente obsessivo. Aparentava superproteção, mas seus
olhos profundos e intimidadores às vezes deixavam transparecer
desejos doentios.
Agora,
enquanto massageava o braço dolorido, Margarida tentava compreender
a brusca mudança no curso de sua vida. Se ela tivesse conseguido
chegar à janela... se tivesse contemplado elementos do seu passado
perdido... talvez, naquela tarde de calor hostil, a peça que faltava
no quebra-cabeça encontrasse o devido lugar.