segunda-feira, 27 de outubro de 2008

Serra da Caraconha | Cap_4




Eram aproximadamente 15 metros do ponto onde estávamos até o centro da toca da onça – uma fenda escura formada por uma enorme rocha que ficava sob nossos pés e uma outra, ainda maior, que se debruçava sobre nossas cabeças. Foi o trecho mais demorado e perigoso de todo o percurso. A fenda parecia querer engolir-nos.

Não haviam pedras soltas (nem firmes) no percurso para nos servir de apoio. Apenas a pedra gelada, lisa, íngreme, indiferente... "Se pelo menos tivessemos uma escada", pensei. Vi hesitação nos olhos de alguns. Não vi nos meus porque não tinha um espelho. Começamos a escalada dolorosa, desta vez utilizando membros inferiores e superiores. Nada de cordas, nada de guinchos, nada de capacetes ou luvas. Só orações...

Encontramos alguns objetos que contrastaram bastante com a paisagem rústica e primária ao redor. Utensílios colocados pelo homem naquele trecho com o objetivo de possibilitar a escalada. Eram uns poucos tijolos presos com cimento na parede da rocha e uma torre de metal estirada na lateral do ponto mais aladeirado.

Haviam marcas de cimento sem tijolos, um sinal gritante de que a possibilidade dos tijolos se partirem era real. Já havia acontecido com outros aventureiros. Tentávamos não olhar para baixo. Não imaginar a queda fatal. Arrastamos-nos como cobras, lentamente, sujando nossas roupas com uma substância que pigmentava o chão, provavelmente era a defecação seca e esmiuçada dos insetos. Sujo e exausto, as garrafas machucando meu corpo, consegui alcançar o primeiro tijolo...

sexta-feira, 24 de outubro de 2008

Cafeína é vitamina?


O celular desperta,
A correria recomeça.
Um passo atrás do outro.
Olhos sempre alerta.

O atraso ao meu encalço.
Acelerado, contínuo, crescente.
“Oh! Motorista incompetente”.
Melhor seria correr descalço.

Invejo o vira-lata na esquina,
Tranqüilo, rende-se a sonolência.
Já eu, a beira da demência,
Total dependente da cafeína.

quinta-feira, 23 de outubro de 2008

Fuga para a Bahia




Migração reversa no século XXII,

Todos sairão das metrópoles com destino à Bahia,

Onde não há correria, o cancão ainda assovia,

E o trabalho, só depois...



"O baiano sempre abre a porta,

leva a gente pra um passeio,

são 24 horas de recreio,

na terra onde o verde não desbota".

quarta-feira, 22 de outubro de 2008

Retrato

Pinte um quadro. Não será necessário sujar as mãos de tinta, basta compor com a mente.Quando a obra prima estiver concluída estaremos diante de uma figura singular, imaginada por todos, buscada por alguns.

Na tela virgem, comece a fazer um esboço da cena que mais provoca expectativa no ser humano: o advento, a segunda vinda de Cristo, o fim da dor. Fique atento aos mínimos detalhes na hora de colorir, não esqueça da penumbra em degradê, efeito causado pela luz crescente que parte do trono de Cristo. Se for bastante criativo e dedicado talvez (e esse ‘talvez’ apresenta relevância altamente significativa nesse contexto) consiga se aproximar do que pode ser considerado parecido com o evento mais esperado dos últimos 2008 anos. Não há nada mais satisfatório do que a sensação de ter realizado um belo trabalho. Certamente valerá o esforço. Pelo menos até aqui.

Sua ação a seguir será delicada. Espero não pôr a perder todo seu esforço de aproximar-se da beleza real que aguardamos com o próximo passo que concluirá sua obra de arte, pois, o acabamento da pintura exigirá de nós um produto particularmente especial e raro: a sinceridade. Ela deixou de ser usada pelos “artistas” terrenos quando estes perceberam que as pessoas não reagiam bem a ela. Talvez por isso, o último passo seja o mais difícil. Mas vamos lá, você consegue.

Visualize na sua pintura um espaço privilegiado, de onde a visão para o trono de Cristo seja perfeita. Agora insira sua figura lá, sob os olhos de Jesus. Após tê-lo feito, contemple-se. Traduza-se. Decodifique-se. Que mensagem é transmitida pela sua expressão facial? Como seus olhos fitam o Cristo? Há um sorriso em seu rosto? Ou rolam lágrimas de tristeza em sua face? Sua reação é de compulsivo desejo de abraçá-lo ou a vergonha dos pecados acariciados fazem você desejar a morte? Que palavras você profere? A letra do esperado hino da vitória ou o clamor desesperado: pedras caiam sobre mim! As respostas a estas perguntas já estavam estampadas em seu coração antes mesmo de você pintar o quadro. Um quadro que, na verdade, sempre existiu.

Há uma conseqüência irremediável nessa experiência: a consciência de que esse quadro pintado por você é, na verdade, a pura realidade escondida atrás das ilusões e sonhos fúteis rabiscados sobre a tela original.

A morte de Cristo nos concedeu a chance de “mudar o quadro”. O sangue do filho de Deus, vertido por nós, possibilitou que sejam feitas retificações da nossa expressão na pintura. Se permitirmos e formos fiéis, Cristo pode colocar um sorriso em nossos lábios, apagar as lágrimas que desfiguraram nosso rosto, corar a fria e obscura palidez de nossa fase. Ele quer que você fique bem no retrato.


Carnaval Televisionado


Mesmo da redação, eu recebia as baforadas ludibriantes invadindo meus sentidos. A música, cadenciada num ritmo tentador, parecia obrigar todas aquelas pessoas a balançarem seus corpos sem pudor, como zumbis hipnotizados. Espasmos acelerados e desprovidos de qualquer significado conduziam a multidão. Todos exibindo um exagerado sorriso no rosto. Estava acompanhando o Carnaval 2008 pela televisão.

Foi nessa hora que percebi a noção do perigo. Ouvi as batidas da sola do meu sapato contra o chão postiço da “câmara filosofal” (é como me refiro à redação às vezes). O som oco reverberava no espaço silencioso, competindo apenas com o alarido da festa, proveniente da TV. Parei de supetão e, apontando o controle remoto para o aparelho áudio-visual, reduzi o volume. Não queria que, mais uma vez, meus sentidos fossem roubados e me visse sendo arrebatado para a festa.

Comecei a imaginar, com uma expressão de gratidão no rosto, como seria se eu tivesse sido escalado para cobrir a festa no circuito. Certamente não ouviria o som das minhas pisadas no chão. O que, então, me faria recobrar os sentidos? Um soco desferido por alguém com o dobro do meu tamanho? Muito provável.

O carnaval acabou e, após a quarta-feira de cinzas, ficou guardada uma certeza bastante colorida (Não, não era a certeza de que a próxima festa que eu iria cobrir seria a Parada Gay). Era a certeza de que NADA QUE ESTE MUNDO POSSA OFERECER ME DARÁ O PRAZER QUE TENHO EM CRISTO JESUS.

terça-feira, 21 de outubro de 2008

Serra da Caraconha | Cap_3


O fato de Ana ir à minha frente, mostrando-me onde as pedras eram firmes e onde eu não deveria pisar, me deixaram meio sem graça e sentindo que algum comentário sobre a cena estava na iminência de mostrar-se. Veio de David, caçoando da forma como eu “optei por proteger” minha namorada. No entanto, ele se encontrava tão distante da esposa (Mara) que mal podia vê-la.

Começamos a subir a todo gás o percurso ainda não tão íngreme. Marcas do sangue da senhora machucada sinalizavam as pedras nos locais onde era preciso apoiar-se com o joelho. Crianças (teimosas) esgueiravam-se por entre a relva seca, assumindo a ponta dianteira do grupo. Vislumbrar o comando inexperiente a guiar-nos confirmava a desordem.

Uma pausa para reordenar o inconcebível antes que a montanha começasse a castigar-nos com o aladeiramento progressivo de suas rochas proeminentes. Consumíamos água rápido, mas não com a mesma velocidade com que ela ficava quente. Bebíamos assim mesmo. O estômago embrulhando. A saliva espumando. Os lábios começando a rachar.

Chegamos abaixo da toca da onça, ponto ainda distante da metade do monstro de pedra. Mas foi ali, naquele esconderijo de pedras geladas, que recebemos nosso primeiro presente. Todos fizeram silêncio. Introspectivos. Sugando ao máximo a experiência de estar entre os céus e a terra. Pagaríamos (e caro) todo o prazer sentido nos nossos próximos passos...

Por amor


Um deserto causticante atravessei pra ter você,

O oceano revoltado enfrentei só pra te ver;

Escalei o arco-íris, a penumbra do céu rasguei;

Quebrei firmes rochedos até que enfim te encontrei...

Serra da Caraconha | Cap_2


Ao levantar-se, com dificuldade incomum, notou que suas mãos estavam sujas de sangue. As extremidades pontiagudas dos galhos secos arranharam-lhe o corpo, mas, por milagre, não lhe perfuraram a pele. O sangue que escorria sobre a poeira quente inpregnada em sua canela suada provinha do seu joelho direito, que, agora, mostrava uma rótula disforme por traz da epiderme esfolada. “É um aviso. Eu não vou subir”, ponderou a senhora enquanto a dor atinava.

Sob uma árvore de folhas escassas, os ânimos foram arrematados por um curto discurso realista pronunciado pelo “diretor da expedição”. Mais sóbrios, seguimos em direção ao monte de rochas proeminentes. Muitas crianças e mulheres ficaram após o discurso. Prosseguiram os mais audazes, inclusive a senhora de 68 anos.

Finalmente chegamos ao pé da serra e começamos a caminhada. Eu, com duas garrafas pequenas de água enfiadas na cintura, disse com minha voz possante de baixo agregada ao sentimento machista. “Ana, você vai até aonde der. Eu vou até o topo”, afirmei olhando para cima. “Eu vou até o topo”, respondeu Ana (minha namorada) com um tom de desafio.

“Será que vou conseguir? Aquelas pedras não parecem nada firmes...”, balbuciada sozinho já nos primeiros passos. O fato de Ana ir à minha frente, mostrando-me onde as pedras eram firmes e onde eu não deveria pisar, me deixaram meio sem graça e sentindo que algum comentário sobre a cena estava na iminência de mostrar-se...

Fluxo de Consciência


Nos tornamos dependentes de um caminho solitário virgem vertigem mórbida incandescente doente demente que surge de um ponto de luz e se abre num espaço infinito de risos e choros constantes quase permanentes ludibriantes que castigam a carne humana merecedora de castigo e dilacera nervos proeminentes provenientes de traição e desgraça alheia que atinge em cheio coração inocente que acredita em um amor doloroso febril e angustiante porém existente e por isso confortante ver sofrer injustamente o pobre ébrio na esquina que deixou de ser menina dos olhos de quem tem poder para ser e ter e ver o pobre ébrio sofrer menos que um sóbrio que vê e entende e faz idéia do quanto é doloroso viver para ver o pobre ébrio sofrer até que a luz venha tragá-lo para o fim do túnel escuro de rubor ofegante sufocante de pulmões inúteis sobre a terra quente de um deserto causticante sem umidade para afogar pulmões ensopados de água que procuram o ar de um deserto causticante e não acham paradoxo diagnóstico precoce do inconformismo hedonista perseguido buscado anelado morto e sem ar e sem água e sem terra quente do deserto causticante orgulho exacerbado do nada que possui e nem possui permitir denegrir rebaixar contingente erário honorário carga horária horário inexistente de dormir e suportar o insuportável outro lugar anelado como prêmio imerecido fraco e vulnerável pecado racional banal mortal como um pobre ébrio sofredor enganador de escarnecedor inocente caluniador e corrupta lacuna mental apagada por tortura cabal obscuro mistério eterno sangue em movimento no externo visível humano e sombrio espaço acessível a qualquer ébrio sofredor...

Amor gélido


Conquistador caro, mas apenas um conquistador. Faz a paixão ser verdadeira. Nunca trabalha com a ilusão. Sua especialidade é saber provocar o amor, embora nunca o tenha sentido realmente. Envolve-se, funde-se, contamina-se. Razão e emoção numa mistura homogênea. Escura. Fria.

Passa a desejar que seja eterno aquilo que certamente terá um fim. Machuca-se ao machucar. E cada vez que faz um ser amado sofrer, castiga-se machucando-o mais. A dor é tão intensa que nem a certeza de que os momentos bons fizeram tudo valer a pena o conforta.

É difícil orgulhar-se disso. Ele sangra enquanto escreve. Mas o sangue que escapa pelas suas veias, a vida que dele esvai e leva consigo sonhos próprios e alheios, é pouco comparado ao que vaza, enérgica e ininterruptamente, dos cortes que fez no coração de todas que, sorrateiramente, se aproximou.

Não mais dorme, não mais ri. Apenas consola-se: “Cortei, machuquei, fiz sangrar porque posso. Provoquei risos. Por que não posso fazer chorar? Por muito tempo a fiz feliz, tenho o direito de fazê-la sofrer. Nada mais justo”...

Serra da Caraconha | Cap_1



O ar puro só não era mais agradável porque o calor escaldante o transformava em um mormaço maciço que, misturado à poeira que alçava vôo ao sabor do vento, tornava-se ainda mais denso. O silêncio, impiedoso e resistente, parecia duelar com tímpanos viciados em sons urbanos que teimavam em procurá-los em meio à caatinga deserta.

Os desacostumados com a ausência de ruídos tentavam quebrá-lo a golpes de efeitos audíveis, provenientes de aparelhos eletrônicos capazes de ler arquivos MP3. Os burburinhos e as músicas incompatíveis com o ambiente pareciam entrar em rota de colisão com a natureza e com o que ela tentava nos presentear: o som, a cor, o cheiro e o sabor da paz...

Diante da imponente Serra da Caraconha, todo orgulho e ostentação deram lugar ao respeito e, não se deve negar, ao medo. Nem bem chegamos ao pé da montanha e já pude ver as primeiras gotas de sangue a marcar o solo seco. Uma senhora de 68 anos, empolgada com a aventura que lhe aguardava, destinou sua atenção e cuidado na hora de atravessar uma cerca e arame farpado, mas não teve sorte no passo que deu em seguida.

Peles humanas já haviam sido “levemente dilaceradas” nas farpas do arame. Deram sinal de existência os primeiros gritos de dor. Costas arranhadas foram às primeiras conseqüências da euforia desmedida por parte de alguns.

Logo após atravessar a cerca, a frágil senhora de desequilibrou e caiu sobre galhos secos (mas vivos) característicos da caatinga. Ao levantar-se, com dificuldade incomum, notou que...